segunda-feira, 15 de março de 2010

Ontem

O tempo vai passando tão depressa mas tem momentos da vida que nunca são esquecidos e engolidos pela força do tempo. Momentos que são guardados na memória como cenas de um filme, quadro a quadro, com detalhes tão precisos e preciosos que nos levam até a sentir o perfume daquelas cenas. Assim foi ontem, 14 de março, 51 anos atrás, eu tão menina! Lembrei das sandálias que calçava, da saia vermelha de pregas, e de ficar invisível quase três dias inteiros, nos tempos em que os mortos morriam em casa, e meu pai seguiu na tradição, de vela na mão e padre, médicos, parentes e amigos assustados, ele assim tão jovem! Dois dias de agonia e um de velório e um funeral. Então ontem, porque era 14 de março, ou por qualquer outra razão, lembrei como se tivesse acontecido na véspera, ouvi os sons e até senti o perfume de flores e velas. Lembrei os rostos, os choros, o vozerio de muitos sussurros juntos, o cachorrinho assustado, a cozinha cheirando a café. Lembrei o copo de água que um primo me levou ao me achar num canto esquecido do quintal. E, mais aguda do que todas as lembranças, lembrei o vazio que ele deixou e a saudade do futuro que ele não conheceu, a força da viúva, as filhas crescidas, os netos e até bisnetos.